Como é perder alguém

Acordei com o coração acelerado, precisei de alguns minutos pra me recompor e perceber que acabara de despertar de um terrível pesadelo. Comecei aos poucos a me lembrar dos detalhes e acabei revivendo momentos terríveis. No meu pesadelo eu era perseguida por uma figura feminina horripilante, com olhos assustadores, vestes rasgadas e completamente descabelada, como se fosse uma personagem de um filme de terror. Ela me perseguia com um facão nas mãos e gritava aos quatro ventos que me mataria. Acho que nunca precisei correr tanto num sonho como corri nesse. Acordei apavorada, suando horrores.
Isso aconteceu há quinze anos atrás, na época estava grávida, entrando no oitavo mês de gestação, acordei sentindo muitas dores e percebi que estava entrando em trabalho de parto. Minha irmã me acompanhou ao hospital, onde depois de muito sofrimento dei a luz a uma garotinha. O hospital era público, atendimento precário, não recebi o acompanhamento necessário para um parto pré-maturo, que acabou acarretando problemas respiratórias em milha filha e precisou ficar no CTI.
Me sentia completamente impotente ao vê-la lutar pra se manter viva. Foi muito difícil ouvir do médico que as chances dela eram poucas, que em caso de sobrevivência certamente ficaria com paralisia cerebral. Entrei em choque, não conseguia parar de chorar e por isso me tiraram de perto dela. Algumas horas depois me comunicaram que ela não resistira. O pesadelo estava se concretizando.
Permitiram que eu fosse me despedir, lembro-me que entrei naquele lugar frio, com cheiro de morte no ar. Peguei-a nos braços e me sentei com ela, abraçando-a o mais forte que eu podia. Não sei dizer por quanto tempo permaneci ali, se por alguns minutos ou algumas horas. Era como se o mundo tivesse parado pra mim naquele momento e só existissem nós duas. Só voltei a realidade quando meus familiares chegaram e me levaram dali.
Foi muito difícil chegar em casa sem ela. Havia um buraco enorme no meu peito, achei que nunca seria preenchido novamente. Meus outros dois filhos me receberam querendo saber onde estava a bebê. A expectativa era grande, minha caçula havia escolhido o nome e perguntava várias vezes: cadê a Gabriela, cadê a Gabriela... Eu simplesmente não conseguia responder.
Foram dias amargos demais, quase insuportáveis, cheios de choro, tristeza, agonia, momentos que uma mãe nunca deveria ter que experimentar. Mas a vida é cheia de momentos assim, não é mesmo? Precisamos passar por eles, aprender algo e seguir em frente por mais difícil que pareça.
Após esse fato fiquei com muita dificuldade de me aproximar de crianças e principalmente segurá-las nos colo, criei um bloqueio difícil de transpor. Imaginava que nunca iria conseguir superar.
Por insistência dos meus familiares fui participar de uma palestra sobre teatro de fantoches, alguns meses depois do acontecido, concordei que seria bom pra me distrair um pouco. Observei que o cenário apresentado era todo feito com material reciclado, basicamente com caixas de leite. Aquilo conseguiu prender minha atenção, coisa que nada havia conseguido até então. Foi como se algo nascesse dentro de mim novamente. Voltei pra casa disposta a construir um cenário e comprar uns fantoches pra poder fazer o teatro. Comecei a recolher caixas e caixas de leite nos lixos, não era uma cena muito bonita, revirava todos os lixos como uma louca e foi isso que as pessoas acharam de mim, pensavam que eu havia enlouquecido de vez. Não as culpo, por alguns momentos também achei que tinha perdido o juízo.
Trabalhei duro, por dias seguidos e consegui montar o cenário. Construí uma casinha, tinha até teto, ficou muito bonita. Comprei os fantoches e escrevi o roteiro, completei as lacunas das falas com músicas que as crianças conheciam para que elas pudessem interagir.
Estava muito nervosa, no dia da primeira apresentação haviam muitas crianças e eu imaginei que aquilo era loucura. Como eu iria conseguir enfrentá-las? Mas pensei... já que cheguei até aqui, preciso provar pra mim mesma que posso terminar isso. A apresentação foi um sucesso (tirando os erros é claro) mas no geral ficou muito bom e as crianças adoraram. O problema foi quando terminou a peça e elas estavam eufóricas pra tocar em tudo, nos bonecos, na casinha e pra meu desespero em mim. Imaginei que fosse surtar de vez quando elas se aproximaram me abraçando, fiquei em choque por uns instantes, mas depois do susto comecei a sorrir de novo, nem lembrava mais como era sorrir e depois de uns minutos me vi abraçada a elas e de alguma forma sendo curada com todo aquele amor.
Essa terapia com os bonecos e as crianças durou um bom tempo. O suficiente para que elas se divertissem bastante e eu me recuperasse e entendesse que Deus tem suas formas de trabalhar.
Passei por muitas coisas nessa vida, mas se tivesse que avaliar o que foi mais difícil de superar, com certeza eu diria que foram as perdas das pessoas que eu amei. Cada uma delas levou um pedacinho de mim quando se foram. Já perdi muitos bens materiais, mas nada se compara a perder pessoas.
Perder alguém é sempre muito doloroso, não só nos casos de morte, até porque nesses casos não temos escolha, mas também quando por algum motivo precisamos nos afastar de alguém que amamos. Isso pode ser necessário em alguns casos, pra nossa vida ou a da outra pessoa seguir em frente e isso não quer dizer que a gente não gostaria de permanecer por perto. Só que as vezes é realmente preciso.
Já me afastei de pessoas que amava muito, mas que por motivos diversos a conexão foi quebrada, o diálogo acabou, as coisas que tínhamos em comum foram mudando, novos projetos, novos ideais e com o tempo a gente nem se reconhecia mais.
Considero isso também como um tipo de morte, só que mais difícil de superar, pois mesmo sabendo que a pessoa ainda está por perto, acabamos por nos tornar tão estranhas que nem nos reconhecemos mais.
E aí você olha pra dentro de você e percebe também que você mudou tanto que nem se lembra muito de como era e entende que isso é um processo natural e precisa aprender a lidar com isso. Conviver com a saudade, com a falta do que você foi e do que alguns foram na sua vida.
Sinto falta de muitas pessoas que fizeram parte da minha história e gosto de imaginar que também faço falta em suas vidas. Sei que elas levaram um pedacinho de mim, mas também deixaram um pedacinho delas. Isso pode ser uma forma de curar feridas, cada um se beneficiando da parte do outro, do que aprendeu, do que viveu, do que compartilhou.
A vida passa num piscar de olhos e sei que um dia vou piscar pela última vez, mas eu realmente espero que um pedacinho de mim contribua para levar um brilho nos olhos das pessoas as quais tive o privilégio de conhecer e amar e ficaria feliz se esse brilho permanecesse até o final de suas vidas.




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