Nem início nem fim, apenas os ciclos da vida

 A vida e seus ciclos... começo e fim...  ciclos se encerram de várias formas, alguns deles com a morte, é sobre isso que quero falar um pouco hoje. Perdi minha mãe dia dezoito de janeiro de 2023, quero registrar aqui um breve resumo da história dessa incrível mulher, para que, algumas pessoas que não tiveram o privilégio de conhecer, possam experimentar uma gotinha do que ela foi.

Seu nome era Judite, nasceu no ano de 1929 no interior de Minas Gerais e acabara de completar seus noventa e três anos no dia vinte e nove de dezembro. Foi mãe de dez filhos e experimentou a dor de perder dois desses. Na infância teve a oportunidade de estudar só os primeiros anos, onde aprendeu a ler, escrever e um pouquinho de matemática, lia de "carreirinha" como ela costumava contar. Mas as dificuldades não foram empecilhos para que ela se tornasse a mulher mais sábia que já conheci.

Se casou e os filhos começaram a chegar, junto com eles as dificuldades. Meu pai não era um homem fácil de lidar, como era bem comum naqueles tempos, o que o levaram a ter alguns problemas com a justiça e se ausentar. Por causa disso minha mãe se viu obrigada a se mudar sozinha para Belo Horizonte a procura de emprego e por esse motivo teve que se separar dos meus irmãos por um tempo, deixando cada um em casas diferentes de parentes . Conseguiu emprego no Estado como Auxiliar de serviços gerais, juntou uma pequena quantia, comprou um lote e construiu um pequeno barraco. Reuniu a família novamente e depois de alguns anos meu pai acabou retornando... e foi aí que eu nasci (um bom resultado diga-se de passagem).

Ela era daquelas mulheres que parecem estar ligadas no 220. Não parava, trabalhava fora, trabalhava em casa, cuidava de todo mundo, o tempo todo. A comida era pouca mas ela sabia como manejar isso de uma forma muito criativa. Deixava tudo com um gosto bom, até um simples feijão com farinha que ela enrolava nas mãos e fazia uns bolinhos dividindo com a gente, transformava em um prato especial. Seu trabalho era limpar escolas e fazer merendas, o que me deixava muito orgulhosa, eu achava que minha mãe era uma heroína que deixava a escola um lugar melhor pra todo mundo. Na minha cabeça  ela era a mulher mais forte do mundo! Ela sabia fazer tudo! E tinha uma energia incrível!

Os anos se passaram, a idade foi avançando, as forças se esvaindo. Era estranho não vê-la mais se pendurando nas coisas pra arrumar, resolver tudo, trocar o varal de lugar (ela adorava isso). Nós tínhamos as nossas tarefas mas o principal era sempre com ela. Foi difícil pra ela ter que começar a receber ajuda pra tudo (ficava brava com isso). Mas eu entendo: como alguém que só sabia servir iria aprender a ser servida agora? Como alguém que não conseguia ficar um minuto parada teria que aprender para acompanhar o que o corpo estava exigindo? A teimosia custou caro pra ela com alguns ossos quebrados devido aos tombos, mas ela continuava insistindo.

Mais alguns anos se passaram e agora a mente começa a pregar peças, as memórias se misturam, realidade com fantasia. Um processo doloroso onde histórias importantes se perdem, onde os nomes de pessoas que ela amava vão se confundindo, onde a repetição de "causos" ficam exaustivas...

Mas ela ainda estava lá... em algum lugar... por algum tempo ela se lembrava de tudo... depois ela se ia novamente... até que o cansaço venceu e ela se foi de vez, em casa, onde ela queria estar, rodeada pelas pessoas que ela mais amava, dia dezoito de janeiro de 2023 por volta das dezenove horas.

No dia seguinte enquanto aguardávamos o velório que seria na parte da tarde, minha irmã resolveu separar as roupas para doação, pois, ficar vendo as coisas dela ali era muito doloroso. Enquanto separava algumas roupas eu voltei no tempo e me vi criança, agarrada com uma peça de roupa dela, eu fazia isso todos os dias assim que ela saía pra  trabalhar, eu corria atrás dela na rua, ficava gritando e repetindo: tchau mãe, "bença" mãe, com Deus mãe (detalhe, eu fazia isso chorando) não sei como ela aguentava aquilo, coitada! Depois eu voltava pra casa, pegava uma roupa dela e ficava cheirando e chorando por um tempo, até cansar, depois eu ia brincar como se nada tivesse acontecido (eu adorava um drama)

Peguei as roupas que escolhi dela, fui pra casa, agarrei-me a elas e desabei, como aquela criança do passado. Fiquei ali por um tempo, perdida nas lembranças, então, respirei fundo, parei de chorar e lembrei que eu precisava voltar para o mundo real.

Preciso voltar um pouco no passado agora para vocês entenderem o que vou contar sobre o que aconteceu na hora do enterro, algo épico! Minha mãe gostava muito de maritacas (aquele passarinho barulhento que parece com papagaio sabe?) ela teve uma que criou desde pequena que se chamava Mulata, ela amava minha mãe, era muito ligada a ela. Às vezes a Mulata fugia e ia pras árvores mais altas do quintal e só voltava quando minha mãe chegava e chamava por ela. Você deve estar se perguntando, o que isso tem a ver com a história? Pois bem, no momento que o cortejo seguia subindo a colina para chegar no local programado, que diga-se de passagem, muito bonito, começou a trovejar muito alto como se uma tempestade enorme fosse cair, pareciam tambores tocando lá no céu, foi realmente estrondoso.  Na entrada da quadra onde se encontrava o jazigo tinha uma enorme árvore com muitos, mas muitos pássaros cantando em alto e bom som! E adivinhem que pássaros também estavam lá? Sim!!! Maritacas!!! Faziam uma festa! Como se estivessem recepcionando minha mãe! Contando assim parece mentira, mas eu juro, foi assim mesmo!

Pra fechar com chave de ouro, minha tia, irmã de minha mãe, havia colhido pétalas de flores do seu próprio jardim, e delicadamente foi jogando sobre a urna, criando um tapete com tons rosados e lilás que por sinal combinavam com a roupa preferida dela, a qual escolhemos para aquele momento.

Nossa mãe se foi, mas deixou o seu legado, fez diferença na vida de cada pessoa que ela conheceu, tenho certeza disso! Tenho me perguntado: quando  eu me for terei feito essa diferença? Espero que sim! Seria muito triste passar por aqui e perceber que só perdi o meu tempo...

Agora começa um novo ciclo... seria bom poder continuar as nossas vidas tendo sempre  uma trilha com sinais épicos, onde a natureza faça questão de se manifestar, seja com trovões, canto de pássaros, flores perfumando e enfeitando o caminho ou simplesmente uma leve brisa que refresque o nosso rosto e nos dê um novo ânimo quando a jornada parecer muito pesada!

Que o novo comece! E seja muito bem-vindo!

Obrigada por tudo minha rainha, amo você e espero te ver de novo um dia! Enquanto esse dia não chega vou seguindo por aqui tentando praticar o que você nos ensinou... espero realmente ter aprendido!




 






22 comentários:

  1. Maravilhosa partiu deixando o cheirinho no ar.

    ResponderExcluir
  2. Amei🫶👏👏👏👏

    ResponderExcluir
  3. Tenho certeza que aprendeu o que essa rainha linda tinha pra ensinar, e pode ter certeza você também deixará seu legado, você marcou minha vida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada 🥰 pena que não aparece o seu nome pra eu saber a vida de quem eu marquei 😁

      Excluir
  4. Nossa muito emocionante, eu que vivi praticamente 27 anos vendo ela todos os dias na janela, observando o movimento da rua e sempre me cumprimentava, vai deixar saudades. Lucas Belli

    ResponderExcluir
  5. Que lindo Lü! Chorei aqui lendo esse relato da vida de uma pessoa tão especial quanto era a Tia Judite. Você descreveu sabiamente quem ela era e com muita verdade ressaltou as grandes qualidades dela! Parabéns pelo lindo texto!

    ResponderExcluir
  6. Muito lindo! Ela vai deixar muita saudade.

    ResponderExcluir
  7. Que lindooooo, ela foi e sempre será um exemplo para nós❤️

    ResponderExcluir
  8. Texto Maravilhoso! Bom para a alma, bom para refletir! 👏👏👏🙌

    ResponderExcluir
  9. Sabias palavras e foi lindo seu texto...💖❤️💕 Cada sorriso dela ficará em nossos 💕

    ResponderExcluir
  10. Que Deus receba ela de braços abertos parabéns pela homenagem

    ResponderExcluir
  11. Que texto lindo prima...Minha mãe sempre falou que tia Judite era uma guerreira...Vai deixar saudades....Bjoss prima.

    ResponderExcluir